
Uns vêem o mundo em paredes brancas, outros nas estampas que a vida borda sobre os seus dias. Há quem encontre raízes na lembrança de um cheiro, no brilho de cores que resistem ao sol e ao tempo. O olhar, por vezes, é uma travessia. Nem sempre basta ver; é preciso decifrar, tocar com os olhos, sentir a textura do que se apresenta à nossa frente.
É nesse fluxo entre o que fomos e o que nos tornamos que a exposição “Fico a ver o lá daqui”, de Jorge Dias, se desenha. Aqui, o olhar se abre para o instante que carrega séculos, para a cor que conta histórias, para o detalhe que revela uma identidade em perpétua construção. Não há respostas fixas, apenas perguntas que dançam sobre a superfície das telas, pois,“é o olhar que dá sentido ao que se vê, como aponta John Berger, em Modos de ver.”
Inaugurada no Camões – Centro Cultural Português, no dia 12 de Fevereiro, e aberta ao público até o dia 15 de Março, “Fico a ver o lá daqui” propõe um diálogo entre o que se vê e o que se sente, entre a memória colectiva e a experiência pessoal.
A série Beleza da Terra, composta por três obras (Beleza da Terra I, Beleza da Terra e Beleza da Terra II), é um dos pontos centrais dessa jornada visual. As obras, compostas por acrílico, colagens de tecido e papel espuma, materializam um discurso em que a sobreposição não é apenas técnica, mas também conceitual, isto é, revestimento de memória, tradição e reinvenção se entrelaçam, revelando a multiplicidade do olhar.
Nas três obras, observamos figuras que parecem totens ou guardiões da terra, elementos geométricos que evocam símbolos tribais e paletas que transitam entre os tons terrosos e as divergências do vermelho, azul e verde. As formas circulares, recorrentes nas obras, sugerem ciclos – de vida e de história.
As composições exibem uma dança entre o geométrico e o orgânico: círculos, vasos e figuras humanas emergem de um espaço em que as cores expressivas se impõem sobre fundos ornamentados. O uso do papel espuma adiciona um relevo quase escultórico, fazendo com que os elementos avancem para além da superfície plana e convoquem o espectador a um olhar mais atento.
Esse efeito volumétrico dá às criações uma sensação de materialidade, pois elas vão além da representação e ocupam o ambiente.
Mas o que nos diz essa “beleza da terra” que o artista propõe? Não se trata de uma contemplação bucólica ou de uma exaltação ingênua da paisagem. Pelo contrário, a beleza
aqui se apresenta através da resistência das tradições e dos desafios impostos pela modernidade.
Como no caso das práticas de herança como o timbila ou as danças tradicionais, que, mesmo diante da globalização e da urbanização, continuam a ser instrumentos de afirmação cultural.
A beleza que se propõe não é passiva, mas activa, em constante diálogo com as mudanças
sociais e políticas que definem o cotidiano de Moçambique. Entretanto, a força estética da série pode, em certos momentos, se perder na densidade de informações visuais. A profusão de padrões e sobreposições, embora intencional, pode desafiar a apreensão imediata da composição, tornando a observação mais exigente.
Para alguns observadores, esse excesso pode ser visto como dispersão, enquanto para outros, é justamente esse acúmulo que confere potência às obras, reflectindo a complexidade da história e da cultura que representam.
Vale ressaltar que, o título preconiza um deslocamento, ou seja, um exercício de ver à distância, de interpretar o outro lado a partir do aqui. Mas onde exactamente é “aqui” e onde
está “lá”? Jorge Dias responde sem respostas fechadas, conduzindo o observador por um mosaico de significados que recordam tanto a cultura moçambicana quanto uma estética globalizada e contemporânea.
Em Moçambique, essa dicotomia entre “aqui” e “lá” pode ser observada nas praças e avenidas que trazem consigo a memória histórica e a dinâmica social do país. A Praça da
Independência, no centro de Maputo, simboliza a transição de um “aqui” colonial para um “lá” de liberdade, sendo um espaço que não apenas evidencia um ponto de encontro urbano, todavia também o local onde as celebrações e os protestos, as manifestações culturais e políticas, continuam a redefinir o país.
Adicionalmente, o tecido, um elemento recorrente, remete às capulanas, que, além de vestimenta, são portadoras de narrativas, lembranças e afectos. Em outros termos, assim como a terra é cultivada e transformada, a identidade que emerge dessas obras também se
inscreve na mutabilidade. Portanto, Jorge Dias, com essa exposição, questiona as fronteiras da identidade e da memória.
No jogo entre ver e ser visto, “Fico a ver o lá daqui” transforma o próprio acto de olhar em uma experiência de deslocamento. O espectador é chamado a preencher lacunas, a reconstruir significados, a costurar, ele também, sua própria interpretação. Como escreveu João Guimarães Rosa “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é na travessia”. E, talvez, ao final, perceba que “o lá” nunca esteve tão distante, ou que, no fundo, sempre esteve dentro do “aqui”.
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