Por Domingos Mucambe
Por anos, muitos poucos anos, diga-se, ao abono da verdade, fiquei por muito tempo pensando em como na literatura de Moçambique o conteúdo erótico é escasso, e quando aparece, é muitas vezes disfarçado, usando metáforas de difícil compreensão, não porque, penso eu, talham bem a palavra, que é, por si, uma actividade literária refinada, mas porque temem tocar nesses assuntos.
Esse suposto medo tem uma razão que vai além da ordem dos versos e letras: a nossa cultura.
Tudo o que remete ao erótico nessa cultura é profundamente combatido, reprimido e ocultado, na máxima potência. Ainda em muitas famílias africanas é raro ver pai e mãe aos beijos em frente das crianças, ou mesmo assistir a cenas eróticas num filme com a família. Contudo, dá para se perceber que já alguma mudança nesses costumes trazidos por esses tempos novos.
Talvez seja por conta desses novos tempos em que nasce o livro “O que faz a alma gozar transforma”, uma colecção de poemas que, cuja íntima finalidade, provoca calafrios e lembram a tesão. Muito pior que lembrar a tesão, esse livro romantiza a tesão, fá-lo suportável, dizível, algo apreciável e que deve ser contemplado no lugar de reprimido. Esse talvez seja a maior façanha desse livro lançado em 2024, por Benjamim Luís: tornar o erótico algo “discursável” e conversável numa sociedade resultante de dois blocos opostos, a tradição africana e as religiões (cristianismo e islamismo), que, sabe-se, são dois eixos que tratam a questão do erotismo como tabu, para um lado, e algo a se esconder, para o outro lado.
Há muito que se pode dizer sobre esse livro. Mas, a temática restringe-se nessa vertente: o erótico, o sexo, o prazer, ou seja, uma poesia erótica. Além da uniformidade temática, esse livro tem uma poesia simples, de fácil compreensão. Trata-se de uma proposta com uma escrita acessível para qualquer falante da língua portuguesa. A sua escrita é leve, bonita, prazerosa, fluida e muito maleável.
As discussões em torno da poesia dividem-se em dois caminhos: a poesia tendo a finalidade estética, e a poesia tendo uma finalidade funcional. No primeiro caminho, contempla-se a beleza, a estética, o belo que a literatura pode trazer e ser, com o que muitos dizem, um poema não precisa dizer, basta ser. Aqui, fundamentalmente, o ápice da produção poética reside no prazer que ela trará, e não na lição, ou a mensagem. A Hilda Hilst falando sobre a tristeza de explicar um poema, ela diz que “O poema é um soco”. Deve chatear-nos o estômago, e assim o poema teve muito sucesso.
Pelo caminho contrário, existe o Benjamin Luís, com a sua proposta poética, em que, na escolha entre mensagem e estética, vai pelo primeiro caminho, e tem muito para dizer em meios poéticos.
Professor Manusse, docente de literatura, ensina que a literatura não é o que se diz, mas como se diz. Para esse, o mais importante é a forma com a qual se narra, e não a história em si. Benjamin Luís desvincula-se desse caminho, não por completo. Poesia que é poesia, terá sempre a estética, senão não seria poesia.
Na luta entre o denotativo e conotativo, a escrita de Benjamin Luís pende mais para a denotação, a literalidade. No seu texto “O reencontro”, apresenta-nos apenas palavras, sem nenhuma construção metafórica ou de outras figuras de estilos, que enriquecem tudo aquilo que é poético.
O texto:
“Olhar intenso e recíproco
Ansiedade;
Curiosidade;
Saudade;
Toques;
Beijos;
Carinho;
Lambidela;
Suave e longa.
Gemidos;
Fervor;
Desejo;
Penetração;
Zumbidos;
Ofegos;
Orgasmos.”
Todas as palavras perfiladas nesse poema significam aquilo que o dicionário nos oferece, exceputando-se a palavra zumbido, que é referente ao ruído provocado por insectos, e no toque entre duas pessoas, no acto de penetração, vão provocando gemidos. Houve uma altercação entre o zumbido e gemido, talvez motivada pelo uso pretérito da palavra gemido, ou foi arbitrário.
Esse é um poema simples, claro, e com intenções definíveis, a de mostrar o que acontece depois de muito tempo em que amados, ou pessoas que partilham o leito, se reencontram, o desenlace, os sentimentos e o desejo de possuir um e o outro.
“Ao meu lado ela se deitou,
Nua e sedenta,
Olhos entreabertos e famintos,
No mesmo instante ela sussurrava o proíbido,
O meu coração batia forte,
Enquanto o meu pénis pulsava em sua boca abrasadora
Seios firmes,
Areolas pretas, muito pretas
E a minha boca envolvia os seus mamilos
Sugando o primeiro mel
De prazer
Suor, Saliva gemidos, latidos, promessas de amor,
Continuamos cavalgando
Até a aurora rasgar as nossas almas nuas através da janela de vidro” (In sede)
O livro “O que faz a alma gozar transforma” é feito disso: de gemidos, beijo, sexo e prazer, no seu todo. Para reforçar o erotismo poético de Benjamin João Luís, Aldo Fonseca Fernandes fez ilustrações no livro, que foi publicado, pela primeira vez, em formato e-book em 2023. Os traços de Aldo são também eróticas, homem e mulher no acto sexual.
Trata-se de uma pornografia escrita. Quando vi a capa do livro, as cores vibrantes e vivas capturaram a minha atenção. Mas, o detalhe que salva à vista, é o sinal de proibido para menores de dezoito anos. Aquele foi um indício preliminar de que se iria lidar com conteúdo sexual explícito. Com essa escrita, Benjamin Luís coloca-se como um mensageiro do Deus eros.
Para o que lê, pode enviesar o emprego da palavra pornografia porque olham para isso com um viés moralista. Benjamin, tecendo esse livro, não teve uma visão moralista, longe disso.
Imagino ele a dizer que no erótico não existe moralidade. Aliás, a moral, principalmente a cristã e a islã, olha para o erótico como se fosse uma prevaricação, então é combatido. “Com seus mantos severos, o cristianismo cobriu a sua face (do eros), atribuindo-lhe o nome de pecado onde antes era motivo de festa.” (Friedrich Nietzsche, A Gaia ciência). Se hoje, olha-se o erótico como uma perversão, algo sombrio, que se “arrasta pelos becos, ao invés de alcançar o voo aos céus” (ibidem), é muito por conta da moral. Tal como Benjamin celebra o erótico e sexual, de forma explícita, Nietzsche no mesmo livro ordena e profetiza que “eros se levante de novo! Que as amarras sejam quebradas, que o amor retorne a sua força, e se levante de novo”.
Acima de tudo, esse livro é uma proposta erótica que celebra o amor, romantiza o erótico, e aprecia o prazer que advém disso. A religião, para Nieztsche, ensinou que o prazer carnal (principalmente o sexo) é uma armadilha do Diabo, e o Benjamin Luís muda o cenário, ou tenta mudar, julga que não se deve ter vergonha do erótico, porque não é vergonhoso, troca o sacrificar do prazer pelo lançar-se ao prazer, de corpo e alma, até gozar, como uma medida de transformação.
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