Maio 22, 2025

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A corrida do rinoceronte em “Sangue em Flecha”

 XV capítulos — quinze passos de Salomão rumo a um território onde os sonhos se desfazem e as escolhas têm gosto de sangue.

Sangue em Flecha, de Suzana Espada, vai além de ser o percurso de um jovem tragado pela vertigem do prazer e da irresponsabilidade, ou seja, é o reflexo estilhaçado de uma sociedade em que o masculino se edifica pela violência, pelo domínio e pela recusa da ternura. 

Narrado na primeira pessoa do singular, o romance permite ao leitor aproximar-se da perspectiva de Salomão, expondo, através de sua própria voz, as contradições e fragilidades.

Salomão não foge apenas da rigidez do pai, que transforma o lar num quartel, como ele próprio afirma: “A nossa casa era uma academia militar” (p. 27), mas também da responsabilidade de assumir as suas escolhas. 

Formado em Economia por imposição paterna, quando o que almeja é ser fotógrafo, Salomão parte para Mapulanguene com a câmara ao pescoço e nas costas o legado de uma masculinidade forjada na escassez de afecto e na obediência automática. É nesse ambiente rural, supostamente apaziguador, que se apaixona por Elisa, uma das mulheres do seu tio Arão.

O protagonista da história se descreve como alvo do desejo feminino, centro das atenções, mas suas relações são marcadas por superficialidade, vazio emocional e instrumentalização do outro.

Suzana Espada, com a narrativa, constrói uma crítica subtil à masculinidade tóxica, não por meio de denúncia explícita, mas sim pela exposição crua da subjectividade de um homem em colapso.

Salomão caminha entre um pai autoritário e uma mãe que “fazia as coisas ao seu gosto”, entretanto, incapaz de cortar o vínculo infantil que o imobiliza, permanece preso a uma adolescência estendida. As bofetadas dadas pelo seu pai que ainda recebe aos 30 anos, a falta de interesse no trabalho, os envolvimentos sucessivos com mulheres que não ama, tudo isso aponta para um indivíduo que não amadureceu, embora se esforce por parecer firme.

A sua ida a Mapulanguene é motivada pelo desejo de respirar longe do ambiente repressivo em que cresceu e de explorar a paixão pela fotografia em novos cenários. Enquanto trabalha como motorista para um português — o Mulungo — é surpreendido pelo seu primo Romão, que lhe propõe integrar num projecto supostamente financiado pelas Nações Unidas, em Joanesburgo. A proposta soa promissora, mas não passa de uma armadilha. Salomão acaba conduzido a uma zona isolada, onde é forçado a entrar no mundo da caça furtiva, coagido pelo medo de represálias à sua família, caso recusasse.

O mundo em que se envolve é regido por códigos perversos: ali, o silêncio é comprado com ameaças, e o dinheiro nasce do extermínio da vida selvagem. No primeiro dia, três rinocerontes são abatidos — numa sequência que mistura brutalidade e rituais: os envolvidos procuram curandeiros para tornarem-se invisíveis aos olhos da polícia sul-africana, no Kruger Park. No entanto, o que se torna realmente invisível é o valor pelos animais, como lembra John Berger, em Why Look at Animals?, “ o animal tornou-se segredo que não se partilha”. 

No romance, a caça furtiva é o espelho da degradação humana, da corrupção dos vínculos e da falência ética de uma sociedade que aprendeu a substituir afecto por lucro.

Com o “dinheiro sujo”, o protagonista compra um Mazda dupla cabine — um veículo ironicamente vendido por Romão — e regressa a Maputo. Lá, tenta preencher o vazio com prazeres imediatos: procura uma mulher na Rua Araújo, que passa a ser sua conselheira nos conflitos conjugais com Lídia.

Embora consiga se libertar da caça furtiva e, posteriormente, funde o projecto Casa da Natureza com o intuito de sensibilizar comunidades para a protecção ambiental, essa mudança não consegue apagar o rastro de destruição que deixou. É um gesto de redenção, mas tardio, talvez impulsionado mais pelo peso da culpa do que por genuína transformação interior.

Sangue em Flecha, apesar da força temática, sofre de certa previsibilidade, que acaba por enfraquecer a tensão narrativa. A linearidade dos acontecimentos, a ausência de momentos verdadeiramente desconcertantes limitam a capacidade do texto de surpreender o leitor.

Ainda assim, o livro oferece um terreno fértil para discutir temas relevantes e contemporâneos: o tráfico de animais, as masculinidades tóxicas, a juventude desencantada e as falsas promessas de ascensão.

Ao fim da leitura, é como se uma flecha também nos atravessasse — não no corpo, mas na consciência. E talvez o romance nos interpele: quantos homens, como Salomão, confundem liberdade com a ausência de responsabilidade?

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