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Realismo ou deficiência no final aberto de “Nhinguitimo”?

Por Domingos Inácio Mucambe

Quando se pensa na arte produzida na era colonial, é impossível não mencionar o conto “Nhinguitimo”, incluso no livro Nós matamos o cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana. Publicado, pela primeira vez, em 1964, o texto não pôde distanciar-se das problemáticas próprias que os moçambicanos, naquela altura, estavam sujeitos: a humilhação, injustiça, racismo, desigualdades, e etc.
Licínio de Azevedo, reconhecido realizador nacional, adaptou a narrativa de Honwana em uma curta-metragem com o mesmo título, “Nhinguitimo”, que veio a ser projectado nos cinemas nacionais em 2021, tempos de pandemia, em que Jorge Ferrão fez a analogia de nhinguitimo (ventos) com a propagação do Coronavírus, justificando, assim, a razão de o filme ser produzido e lançado nos anos da pandemia.

Ao longo desta crítica, pretendo explorar um possível realismo que o filme nos apresenta ao terminar, sem conclusão, ou, em termos próprios, um final aberto, sem esquecer os vários aspectos que compõem uma curta-metragem: a trilha sonora, a fotografia, e etc.

O enredo começa a desenrolar-se com o protagonista, Vírgula Oito, arrebatado até aos confins da sua negra alma pela previsão duma colheita que enche palhotas, estômagos e olhos azuis. Partilhando a sua felicidade para com os amigos, é-lhe avisado sobre possíveis contornos relacionados à opressão colonial, em que um negro não assimilado, não educado e sem competência linguística, na língua do colono, nunca pode lograr sucessos e ter vida de “branco”.

Conforme previsto pelos amigos de Vírgula Oito, Maguiguana e Matxinguitana, o branco (Rodrigues, proprietário de uma cantina), depois de conversações com administrador, decide arrancar as terras dos moçambicanos, o que gera revolta em Vírgula Oito. Sentido-se injustiçado e ultrajado, nas suas próprias terras, tenta uma revolta colectiva que não sucede muito por conta da resignação dos outros camponeses. Por via disso, assume uma contrariedade incotrolável.

A obra áudio-visual de Azevedo, replicando um clássico da literatura moçambicana, não perde esse estatuto: preto e branco que vai revelando e/ou inserindo essa narrativa em algum lugar do passado colonial. Como, também, a fotografia nos vai possibilitando criar um sentimento apropriado. Tendo em conta que preto e branco, às vezes, pode representar tristeza, melancolia e alguma falta de “cor” da vida, os telespectadores vão-se preparando emocionalmente com as cores que compõem a obra.

A trilha sonora, aliada às cores, liberta sentimentos aos telespectadores ou espectadores, obrigando, assim sendo, a acompanharem a narrativa com expectativa, libertando emoções condizentes com cada momento do filme. Amúsica incidental inicial, acompanhado por pios de pássaros, simboliza uma paz, tranquilidade e um aparente bem-estar, o que é justificado, posteriormente, com a excitação do Vírgula Oito. Mais adiante, outra sonoridade, mesmo de olhos vedados, permite que se perceba a iminência de um momento romântico, entre o protagonista e a Nteasse, a mulher com a qual sonha casar depois da colheita frustrada pelo branco. Outra música incidental prevê um evento específico do filme, intensificando as emoções, no clímax, entre gritarias e apelos à revolta. Aí fica a insinuação de que Vírgula Oito acaba de cometer uma grande asneira e irreversível.

Os elementos estruturais de uma narrativa estão presentes em “Nhinguitimo”: A incitação inicial, na qual se apresentam os personagens, e o contexto está bem colocado, a não apresentação da Ntease logo no íncio revela que o romance do Vírgula Oito é marginal.

O conflito, que é a apropriação das terras dos nativos, representa o obstáculo que o protagonista enfrenta para salvaguardar os seus intentos (ter boas colheitas, casar com a Ntease, vestir como patrão, ser bem sucedido, etc). As acções crescentes, como as reuniões entre nativos, dirigem o enredo até o clímax, em que o protagonista parece ter matado alguém, posicionando-se como um ponto intenso. A intensidade das acções aceleram quando Rodrigues é informado sobvre um eventual crime cometido por Vírgula Oito.

Ora, “Nhinguitimo” não apresenta um fechamento. Quer dizer, o filme termina, a história não. Os espectadores, depois de terminarem os minutos da curta-metragem perguntam-se, “o que aconteceu ao Vírgula Oito?”, “Como a história termina?”, “Nhinguitimo morre ou materializa a sua revolta e o desejo de fazer o uso das terras dos seus ancestrais?”. A falta de um fechamento propriamente dito cria uma certa estranheza no espectador mais tradicional, clássico e que espera sempre por uma moral no final.

Apesar de ser um clássico, “Nhinguitimo” rompe com os ideiais cinematográficos e narrativos da era clássica, com um final aberto. Para Bea Goes (2022), “o final aberto é o filme nos dizendo que não chegará num postulado sobre aquela reflexão; isto fica para o espectador”. Enquanto espera-se um final em que a ordem social e cósmica é restabelecida depois do conflito, o final aberto traz mais indagações e dúvidas do que respostas fixas, o que, pelo contrário, comprometeria a reflexão, enterrando a possibilidade de os telespectadores levarem a narrativa consigo.

O final de “Nhinguitimo” situa-se no nosso tempo (apesar de ser uma narrativa fictícia dos anos 60), no qual os seremos humanos são mais paradoxais e complexos, em que temos várias vozes, talvez anoitecidas, que nos desconstroem. As contradições que reflectem o humano actual são muito bem atendidas com o final do “Nhinguitimo”, além de ser um momento em que o (tel)espectador tem para criar e reflectir o seu próprio fechamento.

Por um lado, a falta de clareza no momento do suposto assassinato confunde os telespectadores, mas, por outro lado, pode ser uma valia para que o filme possa ser apropriado para telespectadores de todas idades, como também esconde a morte, a violência para a construção de uma sociedade mais pacífica.

A ambiguidade, a interpretação a cargo do espectador, a continuidade da história além do que é mostrado, a reflexão e o realismo que evidencia a complexidade da vida real revelam outras qualidades à curta-metragem. Por exemplo, a interpretação íntima da mensagem.

 

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